Resumo
A palavra Deus, presente nas línguas latinas modernas, é resultado de um longo percurso etimológico e conceitual que atravessa culturas indo-europeias, a filosofia greco-romana, a teologia judaico-cristã e a estruturação linguística do latim clássico. Este artigo apresenta uma análise historicamente fundamentada sobre o surgimento do termo, sua evolução semântica e o objetivo filosófico que passou a cumprir na organização do pensamento religioso e racional do Ocidente.
1. Etimologia da palavra “Deus”
A palavra portuguesa Deus deriva do latim Deus, que por sua vez provém da raiz proto-indo-europeia *dei-, significando “brilhar”, “céu luminoso” ou “ser celestial”.
Essa raiz originou termos correspondentes em diversas culturas:
- Sânscrito: deva (“deus”, “ser luminoso”)
- Grego antigo: theós (θεός)
- Latim: deus
- Antigo germânico: Tiw, Ziu → origem de Tuesday (“dia de Tiw”)
- Céltico: Dewos
A reconstrução dessa raiz linguística mostra que, nas culturas indo-europeias mais arcaicas (aprox. 3500–2500 a.C.), o termo para “deus” estava associado não a um criador absoluto, mas a entidades celestes luminosas, geralmente relacionadas ao dia, ao céu ou às forças da natureza.
Conclusão etimológica: A palavra “Deus” tem origem em termos que significavam seres brilhantes do céu, não originalmente um único Deus supremo.
2. Quando surge o termo “Deus” como conceito estruturado?
2.1. No Indo-Europeu (3500–2000 a.C.)
O termo original (deiwós) era plural, referindo-se a várias divindades celestes.
Portanto, o “Deus” monoteísta não existia ainda; havia um panteão.
2.2. No período greco-romano (século VIII a.C.–século I d.C.)
No mundo romano e grego, as palavras deus (latim) e theós (grego):
- eram genéricas e usadas para chamar qualquer divindade, maior ou menor;
- não representavam o conceito de um Ser único, perfeito e criador.
A ideia de “O Deus” como ser absoluto foi filosoficamente construída, não herdada da religião popular.
3. O papel da filosofia: quando surge o “Deus” como ideia racional?
3.1. A virada filosófica grega
Entre os séculos VI e IV a.C., filósofos gregos redefiniram o conceito de divino:
- Xenófanes critica os deuses antropomórficos e propõe um Deus único, eterno e moral.
- Platão fala do “Bem” e do “Demiurgo”, um princípio racional ordenador.
- Aristóteles formula o conceito do Motor Imóvel: perfeito, eterno, causa primeira.
Esses filósofos não usaram a palavra “Deus” no sentido cristão, mas criaram as bases para um Ser:
- eterno
- perfeito
- imaterial
- causa de todas as coisas
Essa construção intelectual influenciaria profundamente o cristianismo.
4. A transformação no latim cristão (século II–V d.C.)
Com a expansão do cristianismo, os autores latinos precisavam de um termo para expressar o Deus único da tradição hebraica (YHWH).
Eles adotaram a palavra Deus, já existente no latim, mas lhe atribuindo novo sentido:
Sentido romano antigo:
- “um deus entre muitos”
Sentido cristão reformulado:
- “o único Deus verdadeiro”
Assim, “Deus”, grafado com inicial maiúscula, torna-se um nome próprio filosófico-teológico, não apenas um substantivo comum.
A partir do século IV, com Santo Agostinho, o termo passa a significar:
- Ser absoluto
- Criador ex nihilo
- Onipotente, onisciente, onipresente
- Perfeitamente bom
Esta ideia não existia nem no latim pagão nem na filosofia grega primitiva.
5. Objetivo filosófico do termo “Deus”
A palavra “Deus”, no contexto do pensamento ocidental, cumpriu múltiplas funções:
5.1. Fundamento racional do universo
Para filósofos medievais (Agostinho, Tomás de Aquino), “Deus” era a resposta para perguntas fundamentais:
- Por que existe algo em vez de nada?
- O que sustenta a ordem do cosmos?
- Qual a causa primeira de tudo?
Assim, “Deus” se torna um princípio ontológico.
5.2. Referência moral absoluta
“Deus” também passou a representar o fundamento da ética:
- origem da lei moral
- medida do bem
- fonte da justiça
5.3. Unidade conceitual
A palavra permitiu unificar elementos filosóficos (Motor Imóvel), culturais (divindades antigas) e religiosos (YHWH) em um único termo compreensível ao mundo romano.
6. Síntese histórica
Período
Sentido da Palavra
3500–2000 a.C. (Indo-europeu)
Ser celestial luminoso; divindade plural
Grécia e Roma antigas
Qualquer divindade; termo genérico
Filosofia clássica
Princípio racional, causa primeira
Cristianismo (séc. II–V)
Deus único absoluto, criador, perfeito
Modernidade
Conceito metafísico central e objeto de debate filosófico
Conclusão
A palavra “Deus” não nasceu com o significado atual. Ela:
- começou significando ser celeste luminoso,
- evoluiu para representar deuses variados,
- foi reformulada pela filosofia como princípio racional,
- e finalmente recebeu, no cristianismo e no pensamento medieval, o sentido de Ser absoluto, criador e único.
Assim, o termo é fruto de quatro milênios de transformações linguísticas, teológicas e filosóficas, refletindo não apenas crenças, mas a própria tentativa humana de compreender a origem e o sentido da existência.
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