A Origem da Palavra “Deus”: Formação Histórica, Transformações Culturais e Sentido Filosófico

Por Professor Leandro , 8 Dezembro 2025
Deus

Resumo

A palavra Deus, presente nas línguas latinas modernas, é resultado de um longo percurso etimológico e conceitual que atravessa culturas indo-europeias, a filosofia greco-romana, a teologia judaico-cristã e a estruturação linguística do latim clássico. Este artigo apresenta uma análise historicamente fundamentada sobre o surgimento do termo, sua evolução semântica e o objetivo filosófico que passou a cumprir na organização do pensamento religioso e racional do Ocidente.

1. Etimologia da palavra “Deus”

A palavra portuguesa Deus deriva do latim Deus, que por sua vez provém da raiz proto-indo-europeia *dei-, significando “brilhar”, “céu luminoso” ou “ser celestial”.
Essa raiz originou termos correspondentes em diversas culturas:

  • Sânscrito: deva (“deus”, “ser luminoso”)
  • Grego antigo: theós (θεός)
  • Latim: deus
  • Antigo germânico: Tiw, Ziu → origem de Tuesday (“dia de Tiw”)
  • Céltico: Dewos

A reconstrução dessa raiz linguística mostra que, nas culturas indo-europeias mais arcaicas (aprox. 3500–2500 a.C.), o termo para “deus” estava associado não a um criador absoluto, mas a entidades celestes luminosas, geralmente relacionadas ao dia, ao céu ou às forças da natureza.

Conclusão etimológica: A palavra “Deus” tem origem em termos que significavam seres brilhantes do céu, não originalmente um único Deus supremo.

2. Quando surge o termo “Deus” como conceito estruturado?

2.1. No Indo-Europeu (3500–2000 a.C.)

O termo original (deiwós) era plural, referindo-se a várias divindades celestes.
Portanto, o “Deus” monoteísta não existia ainda; havia um panteão.

2.2. No período greco-romano (século VIII a.C.–século I d.C.)

No mundo romano e grego, as palavras deus (latim) e theós (grego):

  • eram genéricas e usadas para chamar qualquer divindade, maior ou menor;
  • não representavam o conceito de um Ser único, perfeito e criador.

A ideia de “O Deus” como ser absoluto foi filosoficamente construída, não herdada da religião popular.

3. O papel da filosofia: quando surge o “Deus” como ideia racional?

3.1. A virada filosófica grega

Entre os séculos VI e IV a.C., filósofos gregos redefiniram o conceito de divino:

  • Xenófanes critica os deuses antropomórficos e propõe um Deus único, eterno e moral.
  • Platão fala do “Bem” e do “Demiurgo”, um princípio racional ordenador.
  • Aristóteles formula o conceito do Motor Imóvel: perfeito, eterno, causa primeira.

Esses filósofos não usaram a palavra “Deus” no sentido cristão, mas criaram as bases para um Ser:

  • eterno
  • perfeito
  • imaterial
  • causa de todas as coisas

Essa construção intelectual influenciaria profundamente o cristianismo.

4. A transformação no latim cristão (século II–V d.C.)

Com a expansão do cristianismo, os autores latinos precisavam de um termo para expressar o Deus único da tradição hebraica (YHWH).
Eles adotaram a palavra Deus, já existente no latim, mas lhe atribuindo novo sentido:

Sentido romano antigo:

  • “um deus entre muitos”

Sentido cristão reformulado:

  • “o único Deus verdadeiro”

Assim, “Deus”, grafado com inicial maiúscula, torna-se um nome próprio filosófico-teológico, não apenas um substantivo comum.

A partir do século IV, com Santo Agostinho, o termo passa a significar:

  • Ser absoluto
  • Criador ex nihilo
  • Onipotente, onisciente, onipresente
  • Perfeitamente bom

Esta ideia não existia nem no latim pagão nem na filosofia grega primitiva.

5. Objetivo filosófico do termo “Deus”

A palavra “Deus”, no contexto do pensamento ocidental, cumpriu múltiplas funções:

5.1. Fundamento racional do universo

Para filósofos medievais (Agostinho, Tomás de Aquino), “Deus” era a resposta para perguntas fundamentais:

  • Por que existe algo em vez de nada?
  • O que sustenta a ordem do cosmos?
  • Qual a causa primeira de tudo?

Assim, “Deus” se torna um princípio ontológico.

5.2. Referência moral absoluta

“Deus” também passou a representar o fundamento da ética:

  • origem da lei moral
  • medida do bem
  • fonte da justiça

5.3. Unidade conceitual

A palavra permitiu unificar elementos filosóficos (Motor Imóvel), culturais (divindades antigas) e religiosos (YHWH) em um único termo compreensível ao mundo romano.

6. Síntese histórica

Período

Sentido da Palavra

3500–2000 a.C. (Indo-europeu)

Ser celestial luminoso; divindade plural

Grécia e Roma antigas

Qualquer divindade; termo genérico

Filosofia clássica

Princípio racional, causa primeira

Cristianismo (séc. II–V)

Deus único absoluto, criador, perfeito

Modernidade

Conceito metafísico central e objeto de debate filosófico

Conclusão

A palavra “Deus” não nasceu com o significado atual. Ela:

  1. começou significando ser celeste luminoso,
  2. evoluiu para representar deuses variados,
  3. foi reformulada pela filosofia como princípio racional,
  4. e finalmente recebeu, no cristianismo e no pensamento medieval, o sentido de Ser absoluto, criador e único.

Assim, o termo é fruto de quatro milênios de transformações linguísticas, teológicas e filosóficas, refletindo não apenas crenças, mas a própria tentativa humana de compreender a origem e o sentido da existência.

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